Marxismo e cultura, indicações de leitura

sistema literário
6 min readNov 10, 2021

“Dois escritores podem representar (expressar) o mesmo momento histórico-social, mas um pode ser artista e o outro simples borra-botas” — a frase espirituosa do revolucionário italiano Antonio Gramsci, que foi crítico literário, dá uma síntese dos requisitos para uma análise marxista da arte: conseguir compreender o caráter histórico e social da arte, sua origem e função, sem perder de vista suas determinações próprias, a relativa autonomia conquistada pela configuração artística (a unidade entre forma e conteúdo que dá vida a um pequeno mundo). Infelizmente a edição brasileira dos seus Cadernos do Cárcere (o trecho é do vol. 6) não entrou na lista da Festa do Livro da USP 2021, mas há alguns livros muito interessantes para quem se interessa pelo debate cultural em uma perspectiva marxista (e suas margens, digamos assim), oferecidos com 50% de desconto.

Essa pequena seleção foi organizada a partir dos títulos disponíveis na feira, portanto, pela metade do preço (infelizmente, muita coisa boa ficou de fora) e sobre os quais ainda não tinha comentado no instagram {segue lá!}. Alguns textos clássicos, outros sobre debates históricos importantes, alguns trabalhos mais panorâmicos, outros de análise de problemas culturais específicos. Principalmente literatura, que é minha área de estudo. Optei também por não incluir na lista comentadores de autores importantes da estética marxista, fica pra outra oportunidade.

Se você tiver outras sugestões, vou adorar saber. E me avisa se gosta desse tipo de lista!

Revolução, arte e cultura, de Anatoli Lunatchárski (Org. Douglas Estevam e Iná Camargo Costa. Trad. Ana Chã, Augusto Juncal, Beatriz Calló, Douglas Estevam, Juliana Bonassa, Juliana Caetano, Laura Brauer, Maria Aparecida, Miguel Stedile e Pedro Mantovane. Cotejo com o original russo: André Rosa e Sônia Branco). Expressão Popular, 2018

Lunatchárski foi nomeado Comissário do Povo para a Educação após a Revolução de Outubro e ocupou o cargo até 1929. Nos artigos aí reunidos, ele discute alguns dilemas da produção, da crítica e da difusão da arte (a nova arte proletária, bem como o cânone russo) no calor da revolução em curso. Uma vez que “o socialismo não pode ser chamado à vida de repente”, qual o papel da cultura na formação de um novo modo de vida? E como se relacionam a auto-organização do movimento de cultura proletária e as tarefas do estado soviético?

A coleção ARTE E SOCIEDADE, da Expressão Popular, é, aliás, toda excelente — proposta, título e preços. Por ela está publicado, na antologia Marxismo e teoria da literatura, o clássico ensaio “Narrar ou descrever”, de Lukács, texto que consta na bibliografia básica de praticamente todo curso de Letras.

“Dialética do marxismo cultural”, de Iná Camargo Costa

É um ensaio que joga luz sobre as ofensivas obscurantistas no campo da cultura. As duas primeiras partes oferecem um histórico do mito do “marxismo cultural”, primeiro na Alemanha nazista, depois nos Estados Unidos. A última parte (infelizmente um pouco abrupta, na minha opinião), dá um panorama breve de autores marxistas — ou com algum grau de diálogo com o marxismo — que se dedicaram ao problema da cultura, e então sugere alguns temas que merecem atenção, sobretudo dos marxistas brasileiros. Bastante elucidativo.

Cultura e materialismo, de Raymond Williams (Trad. André Glaser). Editora Unesp, 2011

No último tópico do ensaio, aliás, Iná Camargo Costa não deixa de sublinhar a relevância de Raymond Williams na formulação de um “materialismo cultural”. Em nota, ela recomenda vivamente A política e as letras, conjunto de entrevistas que colocam sua produção intelectual em perspectiva com a trajetória biográfica. Esse eu não conhecia, então recomendo um livro de ensaios, também editado pela Unesp: Cultura e materialismo. “Base e superestrutura na teoria da cultura marxista” é uma apresentação bastante didática para pensar as determinações econômicas no campo da arte. Pra quem se interessa por distopias e ficção científica, aqui tem um bom texto sobre o assunto.

Industria cultural, de Theodor W. Adorno (Trad. Vinícius Marques Pastorelli). Editora Unesp, 2020

O debate sobre a cultura é uma das marcas do que Perry Anderson chamou “marxismo ocidental”, que tem em Adorno seu maior representante. Os ensaios dessa coletânea analisam alguns aspectos (principalmente relacionados ao rádio e à televisão) daquilo que, em Dialética do esclarecimento, foi caracterizado por ele e Max Horkheimer como “Indústria cultural”, um ramo da produção que “já não [precisa] mais se apresentar como arte”. “O esquema da cultura de massas” é, aliás, uma continuação da discussão travada no livro da dupla.

Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis, de Roberto Schwarz. Editora 34; Duas Cidades, 2012

Foi um daqueles livros de crítica que devorei. É uma análise de Memórias póstumas de Brás Cubas, mas também um ensaio de interpretação da modernidade brasileira. Um ponto luminoso, na minha opinião, é o tópico sobre Eugênia, a “flor da moita” (a moça bonita, mas coxa… ou coxa, embora bonita… lembra?). Uma recomendação adicional para os que desejam se aprofundar na obra do Schwarz é seu último livro publicado, Seja como for, que reúne entrevistas, algumas palestras e resenhas, além de uma carta inédita contando ao orientador Antonio Candido as peripécias pra obter o título de doutor na França (burlando o boicote de docentes antimarxistas). É repetitivo em alguns momentos, insistente sobre os mesmos temas, mas gostei da seleção de textos porque, além de bastante dedicados aos procedimentos de análise literária, trata muito da formação e das leituras do crítico — principalmente sua relação com Marx, além Adorno, Benjamin e Lukács (e do Candido, é claro).

PS: para meus favoritos do Candido, com direito a cara de ressaca, clique aqui.

Marx e Engels como historiadores da literatura, de György Lukács (Trad. Nélio Schneider). Boitempo, 2016

Lukács foi um dos maiores pensadores do século XX. No interior do marxismo, então, poucos chegaram ao volume e à densidade de suas contribuições (até por ter a sorte, como ele mesmo definiu, de uma vida longa e produtiva), particularmente no campo da estética. Esse livro, como ponto de partida pra conhecer a obra do filósofo, reúne algumas vantagens:

  1. Os ensaios sobre literatura, de modo geral, são mais fáceis de ler que os escritos propriamente filosóficos do autor, porque se constroem em torno da investigação de obras ou problemas singulares, não da exposição de generalizações conceituais; o grau de abstração é menor, assim como a atenção que demanda de nós.
  2. As categorias e problemas de história da arte que ele, mais tarde, abordará nas mil e tantas páginas da sua estética (inacabada) não foram tiradas da cartola, mas resultam de décadas de intensa atividade crítica e teórica, das análises — sobretudo literárias — que ele produziu ao longo de uma vida toda. Em especial aquelas redigidas a partir dos anos 1930, como é o caso dos textos contidos nesse livro. São essas análises que dão substância às considerações mais gerais sobre a arte que aparecem em A peculiaridade do estético (1963). Pensando na minha experiência, conhecer minimamente os ensaios críticos antes de mergulhar na sua filosofia da arte foi fundamental pra que eu não me perdesse na imensidão da obra.
  3. É, de certo modo, uma apresentação às considerações dos próprios Marx e Engels sobre a arte, sugerindo uma via pra que a gente possa empreender, por conta própria, um “caminho para Marx” (Lukács usa essa expressão pra se referir ao seu itinerário formativo). Essa edição traz, inclusive, como apêndice, a correspondência trocada por Marx e Engels com Ferdinand Lassale, socialista e autor de uma peça, pelo visto, bem chinfrim, que acabou por refletir seu idealismo e aristocratismo — o debate em torno da tragédia histórica Franz von Sickingen é o mote do primeiro ensaio.

Obras escolhidas I, de Walter Benjamin (Trad. Sergio Paulo Rouanet). Editora Brasiliense

Há edições do autor mais recentes, com traduções mais acuradas e acompanhadas de comentários preciosos (preciso dizer que também peguei edições novas com problemas, um “não” faltando ou sobrando, não lembro) mas Magia e técnica, arte e política, que reúne escritos do final dos anos 1920 até sua morte, em 1940, segue, pra mim, a melhor reunião de textos Benjamin. E a que ainda consta ainda em quase todas as bibliografias de cursos e processos seletivos. Aqui estão o incontornável ensaio sobre “O narrador”, que trata do desenvolvimento histórico da épica, passando pelas histórias orais, o surgimento do romance e finalmente a imprensa de massa; a primeira versão de “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, reflexões sobre o efeito das técnicas de reprodução em larga escala na produção e recepção da arte, além de seu uso na propaganda política; uma “Pequena história da fotografia”; a conferência sobre “O autor como produtor”, em que faz considerações sobre a posição social dos escritores e o que se convencionou chamar “arte de tendência”; estudos sobre Kafka, Brecht, Proust, os surrealistas… além das teses “Sobre o conceito de história” e um anexo com textos sobre livros infantis e história dos brinquedos. Textos que se tornaram canônicos (não só) na teoria e crítica literária, e estão dispersos nas novas publicações.

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Sou Carolina Peters, graduada em letras e mestranda em filosofia. Aqui, falo sobre literatura, filosofia e sociedade. http://instagram.com/sistemaliterario