Sobre Brazza, primeiro romance de Mariana Brecht

sistema literário
4 min readJul 4, 2021
BRECHT, Mariana. Brazza. Ilustrado por Anne-Muanaw. Belo Horizonte: Moinhos, 2020.

Manuela é uma jovem trabalhadora autônoma do audiovisual. Quando recebe a proposta de passar um mês filmando na República do Congo, a convite de uma empresa brasileira que constrói cisternas e hospitais em comunidades pobres do país africano, sua carreira, em via ascendente, encontra seu relacionamento amoroso estagnado. Do choque precisa resultar o recuo de algum dos vetores e, assim, apesar das ameaças de Michel, ela embarca confiante nessa viagem.

Não é só uma proposta de trabalho financeiramente vantajosa. O convite apresenta a Manuela um país que ela nem sabia existir, sobre o qual talvez apenas tivesse ouvido falar nas aventuras de Tintin. Com curiosidade ativa e convicção humanista e democrática, ela anseia por conhecer os Sapeurs e inscrever definitivamente esse território, seus habitantes e cidades que nem constam no mapa em seu atlas particular.

Mas, logo que põe os pés no aeroporto de Brazzaville, toda a expectativa da viagem é frustrada: seu passaporte é retido e ela descobre que as filmagens para as quais foi contratada farão parte de um documentário sobre a vida do atual presidente, no poder há mais de duas décadas e candidato a mais uma reeleição (a legitimidade dos pleitos anteriores é, no mínimo contestável). Às vésperas de um novo pleito, a situação militar do país é, além de tudo, instável.

Esse é o resumo de Brazza, o primeiro romance de Mariana Brecht. Antes desse livro, ela já publicava poesia e trabalhou na escrita e design narrativo de “A Linha”, experiência em realidade virtual premiada ano passado com o Primetime Emmy de Inovação. O enredo é baseado numa experiência real da autora, um depoimento da Mari foi publicado na Marie Claire“Sem saber, fui levada a trabalhar para o autoritário presidente do Congo”.

Como é de se esperar, a trajetória profissional da autora na poesia e no audiovisual empresta muita visualidade ao livro, nos versos que se engendram na prosa, nas ilustrações lindas e muito bem pensadas de Anne Muanaw, e que compõem com as descrições do cenário… há muita plasticidade aí, mas penso ainda em outros aspectos visuais.

Brazza é um exercício do olhar.

De ver além das superfícies, das pessoas e da política.

O romance que lemos, em certa medida, é o diário onde Manuela organiza seus dias no Congo, pondera as obrigações do ofício com sua consciência, expressa seus juízos sobre os colegas (igualmente estrangeiros), anota as conversas com funcionários subalternos (em sua maioria congoleses), onde, de modo geral, reflete sobre os acontecimentos no cotidiano do trabalho de filmagem para a empresa brasileira, do ramo dos combustíveis fósseis (a extração de petróleo é a principal atividade econômica do país, mas quem me disse não foi Manu, foi o google), patrocinadora do documentário sobre o líder congolês.

Quando encaramos seu diário na distância segura da leitura, além do relato e opiniões imediatamente expressas pela protagonista, vemos surgir na página uma cena maior que a vislumbrada em certos momentos pela personagem, muitas vezes ofuscada pela imagem ostensiva do ditador Sassou, estampada em toda parte, ou interditada em seu acesso pelo maquinário de mineração chinês que revira as ruas da capital.

Há momentos em que alguém chama a atenção de Manu para o quadro mais amplo, como faz o motorista Olivier ao interpelá-la sobre o papel cumprido pela Geosil e seus funcionários na manutenção do regime. “Senti o olhar de Olivier como o de um professor cujo melhor aluno teve que ser reprovado”, conta ela.

Há outros em que a percepção chega tarde demais, depois que a miopia a leva (nos levou?) a confiar de peito aberto em pessoas cuja posição crucial que ocupam já deveria inspirar algum grau de reserva ou mesmo total desconfiança. Ou ainda, momentos em que talvez mal chegue, e vibramos quando o plano funciona e Manu recupera seu passaporte, sem pensar muito sobre como, por quem e com qual intuito ele fora efetivamente confiscado. Mas está tudo ali, escondido à plena vista, como a carta roubada de Poe.

Mas há momentos, é verdade, em que só vemos graças ao olhar de Manu: “Entendi que aquela conversa com Alberto tinha quebrado algo dentro dele. Um golpe de enxada que atingira suas raízes”. Golpe, contudo, que não deixou de revelar, sob o desconcerto, uma insubordinação ainda viva.

Por fim, o livro é um exercício de olhar para o outro. “Você já se deparou com pessoas invisíveis? […] como se fala com alguém invisível?”, Manuela pergunta logo na primeira noite a Michel, num email nunca enviado, pergunta, no fundo, a si mesma. A questão é respondida gradualmente pelos próprios invisíveis com quem se depara, que ela não só vê agiram como escuta falarem por si e até cantar.

Mas, como reflete em seu balanço final, apesar de comer satisfeita o foufou e tomar com prazer as Ngoks não tão geladas:

“Eu não estivera no Congo, mas em outra realidade não muito distante da minha, a trinta horas de viagem. Nela, falamos francês, comemos Nutella, nos abrigamos em casas muradas.”

E essa sociedade só concebe passar ver os “invisíveis” como alvos visados. “Ninguém prestava atenção em mim antes de você chegar, mas você mudou isso. Sabe, os brancos aqui só notam um congolês que outro branco já notou”.

A amarração das pontas do livro com um final de thriller político é, pra mim, o ponto alto. E deixa o gostinho de querer ler mais prosa, talvez até um suspense, da minha amiga Mari Brecht.

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Sou Carolina Peters, graduada em letras e mestranda em filosofia. Aqui, falo sobre literatura, filosofia e sociedade. http://instagram.com/sistemaliterario